Aumento da expectativa de vida do brasileiro faz surgir maior quantidade de pais assistidos pelos filhos. No entanto, o novo momento exige preparação e reflexão para que os envolvidos não sejam pegos desprevenidos.
As cavalgadas pelas estradas lamacentas em Sobral, entre uma fazenda e outra, seguem fortes na memória da gestora comercial Karine Ponte, 47. Afinal, são as lembranças mais vivas da infância que tem ao lado do pai, José Roberto, de 76 anos – cujos últimos dez anos foram lidando com complicações cognitivas após um Acidente Vascular Cerebral (AVC). Hoje, depois de uma vida sendo cuidada pelo empresário, é a filha que provê o zelo com ele.
Com a comunicação afetada pelo problema de saúde, José Roberto passou a desencontrar os pensamentos e as palavras. “A partir daquele momento, eu entendi que começava uma jornada em que o ciclo se invertia. Eu teria de empreender um esforço para me fazer mais presente e para prover condições tanto do ponto de vista emocional quanto financeiro, que pudesse aliviar essa transição para a terceira idade”, conta Karine, que custeia duas cuidadoras para as atividades cotidianas.
Também pudera. Os pais são comumente percebidos como super-heróis e alimentam fantasias de luta contra vilões, mas, ao contrário da ficção, eles não são infalíveis – e parte das pessoas não está preparada para a inversão dos papéis. Contudo, é importante começar a pensar nisso, principalmente por conta do incremento na expectativa de vida e do envelhecimento da população brasileira.
MAIS TEMPO
Em 2012, a proporção de homens com 60 anos ou mais no Ceará era de 5,3%. Seis anos depois, a taxa passou para 6,3%. Em números absolutos, esse grupo cresceu de 464 mil para 579 mil, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua. Além disso, a expectativa de vida em 2017, último ano estimado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), considerou 72,5 anos para o homem brasileiro. Em 2000, era de 66 anos.
Assim, a atenção ganha reforço porque, com a idade, surgem alguns problemas específicos. O Ministério da Saúde descreve que o perfil epidemiológico dos idosos carrega uma “tripla carga de doenças com forte predomínio das condições crônicas”, elevada morbidade por condições agudas decorrentes de causas externas e agudizações de condições crônicas.
PLANEJAMENTO
“Penso que filho nenhum está preparado pra entender que o tempo passa e passa rápido, e as consequências desse tempo acompanham”, pontua Karine Ponte. No entanto, a também psicóloga reforça que uma base familiar consolidada e um estado emocional fortalecido colaboram para o sentimento de gratidão na hora de dizer: “agora sim, chegou a minha vez”.
O turno da produtora de eventos Leiridiana Menezes, 36, iniciou em 2006, um ano após a morte do irmão. Fragilizado, o comerciário Francisco Fernandes da Silva entrou em depressão e se entregou ao álcool e ao fumo. Anos depois, vieram as sucessivas internações decorrentes do uso abusivo. Na peregrinação pelos hospitais, a filha foi sentinela postada ao lado das macas.
“Fui demitida porque ou era o trabalho ou era ele no hospital”, revela.
“Sofri demais com ele, sozinha, levando pra cima e pra baixo. Todo mundo dizia: ‘valha, como é raro ver uma filha cuidando do pai’… E eu dava banho nele, não tinha nada de constrangedor“
Com tanto carinho, o pai elegeu a “santa filha”, como gosta de chamá-la, de assistente oficial. “Era ela que cuidava direito de mim”, orgulha-se, emocionado entre os braços da filha, aos 76 anos.
Para Karine, não importa se o pai já errou, pois mais forte é o ensinamento de empenho no trabalho e na família. “A minha dedicação a ele é uma honra pelo exemplo de pai que ele foi pra mim”, garante ela, que mora num bairro vizinho, mas visita o genitor todos os dias, ajudando-o na mobilidade e nas merendas. “Já me perguntaram: ‘Leiri, e a tua vida?’. A minha vida é essa. Eu tenho que ver meu pai pra viver minha vida. Eu não vou dar as costas pra ele”.
São vínculos como esse que Susana Kramer, psicóloga e vice-coordenadora do Laboratório de Relações Interpessoais (L’abri) da Universidade Federal do Ceará (UFC), considera essenciais às relações parentais para minimizar qualquer estranhamento na inversão dos papéis entre pais e filhos.
RETORNO
“O despreparo vem também por uma dificuldade nossa de lidar com a vida como um ciclo, e esse é um passo importante para que pais e filhos compartilhem essas mudanças aproveitando o que cada fase traz”, analisa. “Se eu tenho pessoas com quem compartilho coisas da minha vida, com quem eu tenho alguma troca, a novidade não vem tão brusca assim porque já existia uma relação intermediária”.
Caso contrário, “dívidas emocionais” podem ser cobradas quando a figura a ser cuidada é percebida como estranha para o outro. Nesse sentido, aponta a especialista, a figura do pai “durão” não ajuda na construção dos laços. “Isso pode dar, em termos afetivos, um ‘gap’ muito prejudicial: o idoso pode se sentir um peso, ou o filho cuidar como obrigação, e não os dois manterem uma relação que seja nutrida no dia a dia”.