“Na minha idade, o importante é compartilhar o que sei”, resume Neuza Guerreiro de Carvalho. Conhecida como vovó Neuza, em 2004 criou o curso “Resgate de memória autobiográfica”, na USP Aberta à Terceira Idade. A cada semestre, oito ou nove alunos aprendiam a contar sua trajetória. Por alto, calcula que mais de 150 idosos passaram por esses “bancos escolares”. “É muito bom para a autoestima deles, que se tornam protagonistas da própria história. Certa vez uma aluna me disse: ‘antes eu era sempre algo de alguém, como mãe, filha, namorada, esposa. Agora sou eu mesma’”. No começo do ano, a pandemia inviabilizou os encontros, que, depois de um período de adaptação, passaram a ser on-line. Foi quando Neuza decidiu que poderia se valer da internet para ampliar o trabalho. Enxugou o programa – “com certa dor no coração”, reconhece – que passou de 16 para oito aulas. No novo formato, a primeira turma começou no dia 1º. com 17 participantes. Entre eles, apenas um homem, ou “menino”, como a professora gosta de chamá-lo, apesar de ter 99 anos. “É a primeira vez que não sou a mais velha da classe. Ele não tem intimidade com computadores, mas já se ofereceram para digitar seus textos”, afirma.
A próxima turma começa no dia 22 de setembro e as inscrições podem ser feitas aqui. São dois módulos que cobrem cronologicamente a trajetória dos participantes. O primeiro abre como “a família que recebi”, para que resgatem a história de seus pais e avós. Em seguida vêm: infância, escolas e juventude. O segundo módulo compreende a vida afetiva, “a família que constituí”, espaços de vivência – as casas e cidades onde as pessoas moraram – e se encerra com a período atual. Ela conta com a ajuda de uma assistente e utiliza trechos de autores consagrados, como Graciliano Ramos e Gabriel García Márquez, para ilustrar como a literatura trata temas que serão abordados nos relatos. Os alunos escrevem seus textos no computador, digitalizam as fotos que consideram relevantes e o resultado pode ser impresso ou virar um pendrive de presente para a família. “Há sempre muita ansiedade para falar”, avalia Neuza, que foi professora de biologia, formada em 1951 no extinto curso de História Natural da USP. Aposentou-se em 1980 e, durante os 15 anos seguintes, dedicou-se à família, mas, em 2005, começou a fazer diversos cursos da Universidade Aberta à Terceira Idade: “foram uns 50 até 2015”, diz.
Além disso, desde 2008, mantém o blog da Vovó Neuza, que reúne mais de 600 textos. “Não sou escritora, registro fatos, que às vezes são testemunhos históricos”, relata, lembrando que, na formatura do antigo ginásio, em 1945, os estudantes cantaram o Hino Nacional em latim. Em vez de encarar a tecnologia como um bicho-papão, faz tempo que a incorporou à sua rotina. Em 1997, notou que não conseguia acompanhar a conversa dos netos (são quatro) e pediu ajuda ao filho – a filha mora no exterior – para ingressar no mundo on-line. “Aprendi pelo menos umas cem palavras novas que desconhecia”, lembra. São 180 dias de isolamento, mas com agenda cheia. Lê dois ou três livros ao mesmo tempo e aproveita para recomendar as obras de Yuval Noah Harari, autor de “Sapiens: uma breve história da humanidade”, “Homo Deus” e “21 lições para o século 21”. Dribla a surdez com próteses auditivas de última geração e alterna o trabalho no computador com atividades domésticas. Neuza completou 90 anos em 12 de abril, mas me conta que, na verdade, nasceu no dia 9: “antigamente havia multa se o registro não fosse feito no dia do nascimento, então meu pai trocou a data”. Conversar com ela é o equivalente a fazer uma pós-graduação em longevidade.
Fonte: G1