“Uma bailarina deve olhar sempre para as estrelas ainda que não as enxergue.” A frase já foi dita e repetida muitas vezes por Fernanda Bianchini, bailarina, fisioterapeuta e fundadora da Associação Fernanda Bianchini – Cia Ballet de Cegos [AFB]. O pensamento faz parte da vida de Fernanda, que começou seu trabalho junto aos deficientes visuais aos 15 anos de idade e, desde então, dedica-se em transformar a vida de muitas pessoas.
“Meus pais eram voluntários no Instituto de Cegos Padre Chico [que completou 90 anos de existência em 2018], e, um dia, eu cheguei ao Instituto vestida com as roupas do ballet, que faço desde pequena. Então, a Irmã responsável pelo Instituto à época me disse: ‘Você não gostaria de ensinar ballet a algumas alunas?’”, contou Fernanda, em entrevista ao O SÃO PAULO, concedida na segunda-feira, 29 de abril, Dia Internacional da Dança.
Atualmente, a Associação recebe 450 alunos de diversas idades, de 3 anos até a terceira idade. “Já passaram por aqui, desde 1995, mais de mil alunos, que tiveram suas vidas transformadas”, disse Fernanda, que, além do trabalho voluntário como professora e presidente da Associação, tem um consultório de fisioterapia e é mãe de três filhos: Maurício, 11, Tiago, 9, e Beatriz, 4.
Os pais de Fernanda foram decisivos para a resposta positiva da adolescente e para tudo o que viria depois. “Eles me incentivaram a aceitar o desafio, e, desde então, aceitar desafios faz parte da minha vida”, disse Fernanda, que, atualmente, além do ballet, por meio da Associação, oferece aulas de dança contemporânea, teatro, musicalização e, ainda, atividades como empreendedorismo, yoga, pilates e fisioterapia.
ROMPENDO BARREIRAS
Gisele Aparecida Camilo, 40, e Geyza Pereira, 33, são bailarinas da Associação e estavam em aula quando a reportagem visitou a sede, localizada na Vila Mariana, zona Sul da Capital Paulista. Gisele e Geyza vão às aulas sozinhas com transporte público e, desde o momento em que saem de casa, enfrentam a dificuldade de atravessar a cidade para chegar ao local.
“No bairro em que moro, não há calçadas nas ruas, então, preciso de ajuda para chegar até o transporte público”, contou Geyza, que foi uma das primeiras alunas de Fernanda, ainda no Instituto Padre Chico, e hoje é professora de ballet para crianças e adolescentes
Gisele, por sua vez, pede a Deus que envie um anjo que possa ajudá-la cada vez que anda pelas plataformas das estações de metrô, pois precisa fazer mais de uma baldeação para chegar. “Cada dia é um problema. Às vezes, é a calçada quebrada ou obstruída, em outras, o semáforo que não funciona”, disse Gisele, que trabalha na área de telemarketing e sonha em ser professora de dança.
Geyza nasceu em Pernambuco e, aos 9 anos, perdeu a visão devido a meningite. “Meus pais vieram para São Paulo buscar ajuda e conseguimos uma vaga no Instituto Padre Chico. Ali, quando eu conheci a Fernanda, comecei a ter aulas de ballet, que era meu sonho, pois antes de perder a visão, eu via bailarinas na televisão”, contou Geyza, que é casada e mãe.
Gisele também teve a perda total da visão há alguns anos, devido ao glaucoma. “Desde os 15 anos, eu tenho baixa visão, mas consegui terminar a faculdade antes de perdê-la totalmente, fato para o qual eu já vinha me preparando”, disse. Antes de conhecer Fernanda, Gisele visitava escolas de dança e fingia não ter nenhuma dificuldade com a visão, para ser aceita entre os demais alunos.
Em outubro de 2017, Geyza teve outra meningite e, em consequência, vários acidentes vasculares cerebrais. Em coma durante dez dias, ela foi desacreditada pelos médicos e achou que dificilmente voltaria a dançar.
“Quando acordei, lembrei que tinha uma apresentação e, alguns dias depois, queria voltar a dançar. Mas foi um processo longo, aulas particulares e apoio dos professores e colegas para voltar a ficar na ponta do pé”, contou.
“A recuperação da nossa primeira bailarina foi um verdadeiro milagre. Rezamos muito para que ela se recuperasse, e, hoje, ela está de volta! Eu acredito que a fé em Deus faz a vida valer a pena”, disse Fernanda, que desde sempre valorizou a dimensão da fé em sua vida.
BALLET SOBRE RODAS
Enquanto os filhos participavam da aula de ballet sobre rodas, as mães aproveitavam o pilates na sala ao lado. “Essa é a única instituição que cuida também de nós, mães”, disse Antonia Santiago, 42, mãe do Luiz Santiago, 9, que nasceu com uma doença rara congênita. “Quando o Luiz conseguiu descer da cadeira de rodas sozinho, após meses de ensaio, em uma apresentação, foi uma emoção muito grande”, disse a mãe.
A mãe de Bianca Felipe, 14, traz a filha ao ballet há seis anos. Para Rosana Felipe, 53, cada conquista de Bianca é comemorada com muita festa. “Ela fez uma apresentação na escola após meses ensaiando aqui, e foi um sucesso”, continuou. Rosana também faz aulas de empreendedorismo e de pilates.
A Associação Fernanda Bianchini é a única companhia de ballet para cegos do mundo. A metodologia foi desenvolvia pela própria Fernanda, durante sua dissertação de mestrado. “Quando comecei, descobri que não havia material disponível e nenhum tipo de capacitação que me ajudasse a ensinar ballet para as pessoas com deficiência visual. Durante minha primeira turma, percebi que eu precisava, sobretudo, intensificar a sensibilidade”, contou Fernanda.
Para ajudar os bailarinos a perceber a leveza de um movimento de braço, por exemplo, Fernanda chegou a amarrar folhas de palmeira nos braços deles. Alguns movimentos são aprendidos com os alunos deitados no chão e a dimensão do toque é muito importante. César Albuquerque é professor e diretor artístico e, há nove anos, trabalha na AFB. Ele começou ballet por causa de um problema no joelho que tem desde criança e se formou pela Escola de Dança do Theatro Municipal de São Paulo. “Todos os dias, aprendemos com eles. O mundo da dança é cheio de egos e, aqui, aprendemos a valorizar, sobretudo, o ser humano”, disse César.
SONHOS NÃO TEM COR
No Dia Internacional da Dança, a casa colorida que abriga a companhia de ballet para cegos estava em movimento. Em todos os cômodos, alunos, pais e professores conversavam, riam, dançavam ou se preparavam para mais uma aula. Por meio da janela de vidro, podia- -se ver as crianças que, em cadeiras de rodas, dançavam sob a orientação do professor.
Recentemente, um documentário para uma televisão alemã contou a trajetória de alguns dos personagens que compõem esta história. O documentário “Olhando para as Estrelas”, de 2017, com direção de Alexandre Peralta, também foi reconhecido internacionalmente e, em breve, deve ser lançado um livro recontando a história do Associação, bem como do método desenvolvido por Fernanda.
“Eu nunca imaginei que a Associação fosse se tornar tudo isso. Eu jamais pensei em fazer dez viagens internacionais junto aos bailarinos ou participar do encerramento das Paralimpíadas de Inverno, no Canadá, em 2010. As coisas foram acontecendo e, hoje, sonhamos em ter uma sede própria”, disse Fernanda. “Recebemos tantos nãos em nossas vidas, e, agora, parece que vivemos um momento de sim”, disse Gisele, enquanto se preparava para mais uma apresentação.
Fonte: http://www.osaopaulo.org.br