Rosa Maria de Matos Mota, de 59 anos, só começou a descobrir as formas mais adequadas para cuidar da mãe e da irmã, ambas idosas e diagnosticadas com demênciasdiferentes, quando conseguiu se abrir para entrar em dois mundos paralelos dos quais ainda hoje não se sente parte. Única totalmente lúcida entre as três mulheres da família, ela faz um esforço diário para tentar desvendar o que habita a mente das duas e construir pontes entre elas. De um lado, um mundo onde imperam as memórias antigas preservadas pelo Alzheimer, construído pela mãe Alzelia, de 85 anos. Do outro, uma fantasia às vezes caótica que habita a mente da irmã Janete, de 60 anos, portadora de uma epilepsia diagnosticada tardiamente e que lhe deixou sequelas neurológicas desde a infância. “Uma não vive sem a outra, e meu desafio é fazer com que a doença de uma não piore a da outra”, diz Rosa.
As três passam a maior parte do tempo juntas, na sala de estar da casa onde moram, em um bairro de classe média de Indaiatuba, a cerca de 100 quilômetros de São Paulo. Qualquer um que chegue ali está prestes a ser convidado para conhecer o emblema do Corinthians que Janete pendurou com orgulho na parede do quarto. Ou a se tornar um personagem do mundo antigo de dona Alzelia. “Você está igualzinho, não mudou nada” ou “nossa, como você envelheceu!”, costuma dizer para as visitas, sejam elas conhecidas ou não. “Minha mãe associa a pessoa a alguém que conheceu no tempo dela e faz a história”, explica Rosa. Mas a conversa não evolui, e dona Alzelia logo retorna a seu mundo solitário do qual só sai vez por outra para dar alguma bronca pelo comportamento na filha Janete, de quem cuidou até começar a sentir, há oito anos, os fortes efeitos de sua doença degenerativa.
Sentada em uma poltrona na mesma sala, Janete se distrai enfeitando as bordas de panos de prato com crochê ou desenhando padrões em forma de Snos enormes cadernos que ganha de presente de Rosa. Nete, como é chamada pela família, nasceu de uma bolsa amniótica que não rompeu no parto e sempre apresentou problemas de desenvolvimento. Levou seis anos para começar a andar, nunca aprendeu a ler nem a escrever. Cresceu sem conseguir falar ou caminhar com desenvoltura, apenas com a referência de ser uma “criança especial”, sem que ninguém da família soubesse exatamente a doença que ela tinha. Foi diagnosticada adulta com disritmia cerebral, popularmente conhecida por epilepsia, quando já tinha danos neurológicos impossíveis de reverter. Hoje, vive em um mundo que se torna caótico quando não está muito concentrada em algo. “Eu aprendi que pra ela estar bem, tem que estar viajando na maionese“, diz Rosa. Por isso, linhas e cadernos não faltam em casa. Distração maior que essas só em dia de jogo de futebol. “No mundo dela, o Neymar faz gol todo dia pro Corinthians. É apaixonada pelos dois”, conta a irmã, rindo.
Mas não foi sempre que Rosa conseguiu sorrir com as particularidades dos mundos nos quais vivem a mãe e a irmã. “A doença pega a gente de surpresa. A gente lida, mas não aceita”, diz. Encarar a demência na família exige um árduo esforço físico e mental. Todos os dias, Rosa acorda a mãe, a banha, a veste e dá lhe o café da manhã. Quando termina, é a vez de repetir a mesma jornada de cuidados com a irmã. “Tem época que dá um desespero, porque você não treina para cuidar de um parente mais velho que você. Já falei coisas que me arrependi muito pra elas”, conta. Rosa sentia raiva por estar com duas doenças dentro de casa que afetam toda a família. “Dizem que Deus não dá uma cruz que você não possa carregar, mas eu tinha duas”, lembra.
Tudo piorou em julho deste ano, no dia em que Nete lhe chamou no quarto de madrugada, muito nervosa e aflita: “Mana! Mana! Mamãe, chão. Pum!”. Dona Alzelia, que até então dividia o quarto com a filha, havia caído no banheiro e não conseguia se mover. O genro, José Carlos, teve que arrombar a porta para conseguir levá-la ao hospital. Ela foi diagnosticada com um AVC e, quando voltou para casa, já não conseguia fazer mais quase nada sozinha. Só meses depois voltou a andar. “A Nete viu tudo isso e ficava muito nervosa. Sabia que não era normal a mamãe estar daquele jeito, às vezes até jogava as próprias fezes nas paredes”, conta Rosa. Para conseguir um ambiente mais tranquilo para a irmã, o jeito foi colocar mais uma cama no quarto do casal para dona Alzelia. “Eu não me incomodo porque é família”, diz José Carlos, que havia prometido ao sogro cuidar das mulheres da família pouco antes dele falecer, há 12 anos.
Mas para Rosa era difícil aceitar. Houve uma fase que a mãe estava muito agressiva, algo comum aos pacientes com Alzheimer. Apertava os braços de Rosa com tanta força que ela não conseguia se soltar. “Tive que morder a minha mãe pra conseguir sair”, conta. O ato impensado deixou uma culpa da qual ela só conseguiu se livrar quando passou a frequentar as reuniões da Associação Brasileira de Alzheimer (Abraz) e viu que, assim como ela, outras pessoas passavam pelas mesmas dificuldades. São encontros de compartilhamento de experiências por cuidadores que enfrentam a irritação e o esquecimento dos parentes em um trabalho emocionalmente esgotador. Nele, não se pode baixar a guarda. Cuidar de um parente com Alzheimer é ser vigia, enfermeiro, tudo. É preciso estar disposto a entrar no mundo destes pacientes, ainda que você não seja uma memória viva ali. “Muitas vezes a minha mãe não lembra de mim, me manda ir chamar a Rosa. Dói. A médica sempre me dizia que eu tinha que entrar na brincadeira dela, mas eu demorei para entender”, conta.
Rosa sempre cuidou da casa e dos filhos enquanto o marido trabalhava na pequena empresa de entregas que eles têm —e que mantém a casa. Quando os dois meninos foram embora, assumiu uma nova responsabilidade com a mãe e a irmã. Perdeu as contas de quantas vezes precisou ir ao hospital pelo estresse, com enxaquecas e desmaios. “Eu deixei de viver a minha vida para viver por elas. São duas filhas que não são minhas e que cuido mesmo sabendo que não vão crescer”, diz.
Antes de se ver entre os dois mundos sobre os quais pouco entende, Rosa vivia um totalmente diferente. Adorava levar José Carlos ao forró ou chamar o marido para longas viagens de carro. “Uma vez, fomos até a Bahia. Tenho uma alma aventureira”, se orgulha. Vez por outra, o marido ainda a convence a lhe acompanhar pelo menos em alguma viagem de trabalho sob o argumento de que ela precisa cuidar de si mesma, para não retornar às emergências dos hospitais pelo estresse. E aí Rosa deixa Alzelia e Janete com a cunhada e uma amiga, mas não desconecta. Está o tempo todo no celular querendo notícias das duas, tentando saber se as cuidadoras temporárias conseguiram dar todos os remédios apesar do sistema à prova de erros que deixou, com os medicamentos distribuídos em pequenos frascos com o nome da paciente e o horário. “Deus achou que eu conseguiria aprender a cuidar das duas, então agora só entrego elas pra ele, não deixo em asilo. Quando tudo passar, se Deus quiser, ainda vou ter força pra viajar. Meu sonho é poder entrar em um carro e viajar sem destino”.
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